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A publicação pela Editora da Universidade Lusíada de uma monografia sobre a obra do arquitecto Maurício de Vasconcellos (MdV – 1925-1997) constituiu uma boa surpresa para o nosso meio editorial. O papel das universidades na difusão de trabalhos científicos é fulcral, pois permite potenciar a aposta que muitos mestrandos e doutourandos têm efectuado em trabalhos de investigação – com ou sem apoio da Fundação para a Ciência e Tecnologia. As editoras comerciais, apesar do dinamismo actual, dificilmente ocuparão por completo o espaço próprio da academia, mesmo quando se equaciona um mercado alargado da língua portuguesa, em expansão notória. 

O aumento do investimento em investigação e posterior divulgação dos resultados, tem permitido ultrapassar, nos últimos anos, uma parte do défice endémico da disciplina, no campo da história, critica e teoria da arquitectura.

Maurício de Vasconcellos, a obra entre 1950-1970: um percurso na carreira, tem por base a dissertação de mestrado em Teoria de Arquitectura, apresentada pelo arquitecto Cândido Reis na Universidade Lusíada. Na génese do trabalho está o acesso ao espólio de MdV, uma fonte primária, não estudada devidamente até à data. O exame desse material foi complementado com a visita aos edifícios e com informação recolhida junto de coetâneos que trabalharam e partilharam experiências com MdV, compaginando as fontes primárias com as principais fontes secundárias disponíveis. 

O corpo central do texto é a descrição das obras e projectos de MdV. A componente descritiva não é porém acompanhada por uma construção teórica suficientemente sólida sobre a produção analisada, o que não se esperaria numa dissertação que resulta de um mestrado em Teoria da Arquitectura. 

A tese enquadrar-se-á mais no território da história do que no universo da teoria, reconhecendo-se um paralelismo, na metodologia adoptada, com outros ensaios recentes sobre História da Arquitectura, elaborados no âmbito do curso de mestrado em História da Arte Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova.

Com a recolha e sistematização da informação disponibilizada, ficamos a conhecer, com maior pormenor, várias obras que são parte integrante do conjunto vasto da nossa melhor arquitectura do século xx que ainda não foi objecto de estudo e divulgação, e que também por essa razão corre o risco de rapidamente desaparecer, ou ser adulterada de forma indelével. Um maior conhecimento desta realidade deveria convergir para um novo fôlego do projecto IAPXX (Inquérito à Arquitectura do Século XX), e funcionar como um estímulo efectivo ao desenvolvimento, dentro e fora do meio académico, da Crítica e da Teoria da Arquitectura. São necessárias novas reflexões, novos modelos conceptuais e polémicas, produtivas e úteis, como suporte à prática de projecto. 

Maurício de Vasconcellos nasce alguns anos depois dos pioneiros do movimento moderno (MM) nacional, como Ruy Athouguia (1917-2006) e Formosinho Sanches (1922-2002), dupla com quem trabalha no projecto do Bairro das Estacas, integrando, portanto, a geração daqueles que iniciaram o seu tirocínio profissional já na fase de afirmação do MM, que se desencadeia após o I Congresso Nacional de Arquitectura, em 1948 – no qual não participa.

No início da carreira, a breve experiência de colaboração nos ateliers de Sérgio Bernardes, no Rio de Janeiro, e de Vilanova Artigas, em São Paulo, é marcante e direcciona um talento e maturidade precoces, que se manifestam tanto na moradia João Penteado, que em 1951 projecta e constrói em São Paulo, como na transposição da influência da moderna arquitectura brasileira para a sua primeira obra em Lisboa – a Moradia Rangel de Lima, de 1952.

O Brasil estava então na vanguarda da arquitectura mundial, com uma produção vasta que, através de protagonistas como o próprio Vilanova Artigas e Oscar Niemeyer, assumiu características heterodoxas em relação aos cânones europeus. A intensidade desta arquitectura teve um impacto forte no contexto português dos anos 50 do séc. XX, mas não substituiu nem afastou, de forma prolongada, outras referências incontornáveis para uma classe profissional em que a circulação internacional de ideias sempre desempenhou um papel fundamental.

A efémera passagem de MdV pelo Brasil é um acontecimento que tem importantes consequências, não apenas na sua biografia, e que vem mais uma vez contradizer a ideia de que o nosso meio profissional é predominantemente fechado a influências externas, ideia que ainda prevalece apesar da ausência de estudos comparativos com outros países, que a pudessem fundamentar. 

Uma forma de testar esse argumento seria quantificar a frequência e tipo de interacções que existiram, por exemplo, nos anos de 1950, entre arquitectos portugueses e estrangeiros e o que sucedeu na mesma época noutros países de escala idêntica como Espanha, Hungria, etc.

Num momento como o actual, em que a relação entre arquitectos portugueses e brasileiros se fortalece, parece-nos contudo mais interessante continuar a estudar a actividade no Brasil de arquitectos portugueses como Artur Rosa, Conceição Silva, Delfim Amorim e Eduardo Anahory, e de arquitectos brasileiros em Portugal, como Winston Astolfi Marques e Oscar Niemeyer, pois estes contactos tornaram-se, em regra, uma plataforma fértil para a cultura lusófona.

O período em foco está bem balizado cronologicamente. Para além de incidir na fase em que MdV exerce o ofício de forma independente, como profissional liberal, inclui os anos (1965-1968) da associação com Conceição Silva (1922-1982) que foi determinante para a estratégia do Gabinete de Planeamento e Arquitectura (GPA), atelier que tem, em 1968, MdV como um dos fundadores.

Na década de 1950 assiste-se ao apogeu do MM (que é uma plataforma de actuação bastante distinta do Modernismo dos anos de 1920) e, depois, nos anos de 1960, à ruptura com a sua vulgarização, reacção que dá origem a uma nova experimentação, que dispara em sentidos diversos, atenta à arquitectura popular, ao património histórico, às correntes organicistas e brutalistas, bem como a linhas de relativa continuidade com o MM, num tardo-moderno pontualmente filiado no estilo internacional.

No seu percurso, MdV procura – e encontra – uma linguagem própria; este é o tema central da tese. 

Para aprofundar esta tese importaria distinguir o que terá na sua postura um carácter mais pessoal, e o que decorre, no essencial, de dinâmicas próprias da sua geração, ou seja, do contexto em que a prática profissional se concretiza. 

Esse exercício não foi central na investigação, o que torna mais difícil validar uma conclusão, que por si já não é muito diferenciadora em relação a outros casos de estudo que poderiam ser interpretados desta forma. 

Os temas da linguagem e da identidade criativa não se autonomizam, mas ao cruzarem-se com outras leituras da arquitectura produzida, permitem caracterizar MdV como um arquitecto versátil, qualidade que frequentemente encontramos em percursos extensos, qualificados e inquietos, de arquitectos que acompanham de forma ágil os debates disciplinares mais consequentes.

Fica a dúvida se a procura de uma linguagem própria era de facto um objectivo relevante para MdV, e fica simultaneamente por demonstrar que esta seria a forma mais pertinente de abordar o material disponível, mas o discurso desenvolvido em torno dessa premissa constrói, com uma estrutura clara, uma leitura da evolução da produção arquitectónica nacional, na qual se destaca o contributo de MdV com obras de excepcional qualidade e relevância, salientando-se, entre as menos conhecidas, as Moradias C. Correia e Domingos França.

O conteúdo do trabalho denota alguns desequilíbrios e uma relação difícil entre a descrição dos projectos, nas fichas respectivas, e a ponderação sobre a informação recebida. Conceitos sedimentados na historiografia da arquitectura contemporânea são utilizados para classificar as obras, de forma ligeira e por vezes mesmo incoerente, factor que é agravado por em diversas passagens a escrita assumir contornos bastante singulares. O texto carecia de uma revisão profunda, pelo menos na transição do ambiente académico para a edição direccionada a um público mais vasto, evitando assim evidenciar falhas que deviam ter sido ultrapassadas na indispensável monitorização prévia da dissertação.

São lançadas linhas de análise que justificavam um tratamento mais rigoroso, sistemático e conclusivo, outras são afloradas mas não chegam a ser aprofundadas, o que não significa que o volume da edição tivesse de ser maior, pois as questões em aberto poderiam ocupar o espaço de outras matérias passíveis de ser tratadas de modo mais sintético. Ainda quanto à economia da edição, a inclusão das memórias descritivas como anexos é oportuna, mas esta documentação, que ocupa 50 dum total de 200 páginas, poderia ter um tratamento mais compacto. 

A apreciação da obra de MdV não se esgotará aqui, nem é essa a finalidade da monografia. Outros trabalhos são necessários, desde logo sobre o GPA. Essa pesquisa trará uma nova perspectiva sobre MdV e revelará um pouco mais a obra de Bartolomeu da Costa Cabral, arquitecto que tem uma intervenção muito significativa neste gabinete.

Será ainda útil estabelecer um paralelismo entre a carreira de MdV e o percurso profissional do arquitecto portuense José Carlos Loureiro (n. 1925), que é em 1976 um dos fundadores do Gabinete de Urbanismo, Arquitectura e Engenharia, Lda, escritório que tem, a vários níveis, uma trajectória semelhante à do GPA, reflectindo-se sobre os processos que levam a uma progressiva evolução da acção como profissional independente até à aposta em estruturas plurais, e de maior escala. |


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